Idealizado por Bruna Longo e contemplado pela 11ª Edição do Prêmio Zé Renato de apoio à produção e desenvolvimento da atividade teatral para a cidade de São Paulo, o projeto Anônimo Muitas Vezes Foi Mulher traz três espetáculos autorais femininos (Criatura - Uma Autópsia, Inventário e Quebra-Cabeça) em transmissão gratuita pelas plataformas de quatro teatros da capital: Cacilda Becker, Arthur Azevedo, João Caetano e Alfredo Mesquita. Três espetáculos solo, três atrizes-autoras (Bruna Longo, Erica Montanheiro e Camila dos Anjos), investigando três artistas criadoras (Mary Shelley, Camile Claudel e Camila dos Anjos - em espetáculo autobiográfico) vivendo em três séculos distintos (XIX, XX, XXI) e lidando com o ato da criação e o histórico silenciamento de autorias femininas.
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O mais antigo registro de autoria declarada em um texto é um poema sumério de 2300 a.C. Muitos filósofos debruçaram-se sobre a questão da importância da autoria para a apreciação de uma obra de arte. Até o Renascimento, quando a perseguição a livros heréticos exigia identificação de uma identidade a ser condenada, a ideia de autoria era considera irrelevante. Michel Foucault considerava a noção do autor como um momento crucial da individualização na história das ideias mas, no final da década de 60, propunha uma volta à irrelevância da autoria, o que ele chamava de desaparecimento do autor, como um fenômeno em que já não importa quem escreve, já que a obra basta por si mesma. "Que importa quem fala?" questionou em 1969. A pergunta sugere que o nome do autor parece se apagar em proveito de uma. No entanto, Foucault reconhece no indivíduo o lugar originário da escrita. O nome do autor é um nome próprio e traz com ele sua história pessoal, o empirismo que criou a própria obra. Quando filósofos questionam e de certa forma celebram o desaparecimento do autor o fazem certamente sem levar em conta os privilégios do sujeito e ignorando todas as minorias cujas vozes autorais foram suprimidas e oprimidas.
Criatura, Uma Autópsia, espetáculo de Bruna Longo, fricciona a vida de Mary Shelley e sua obra mais famosa, Frankenstein. Mary Shelley publicou-o de forma anônima em 1818. Era inconcebível para a época uma mulher (ainda mais uma jovem mulher de 18 anos) ter escrito uma obra que fugia do padrão clássico de literatura para mulheres. O livro foi atribuído a seu parceiro, o célebre poeta Percy Bysshe Shelley, visto a dedicatória a William Godwin, pai de Mary, de quem Shelley era discípulo. Mesmo com a edição de 1831 trazendo o nome da autora e prefácio sobre a origem do romance ainda hoje existem teorias que questionam sua autoria. Mary passou boa parte de sua vida definida pelos que a cercavam. Sobrenomes célebres que ela carregou, primeiro como filha de Mary Wollstonecraft e William Godwin, depois como companheira de Shelley. A atriz-criadora Bruna Longo, durante o processo de pesquisa e ensaios para o espetáculo viu-se mergulhada nesses questionamentos. Frankenstein é um romance sobre o ato da criação e sobre busca por identidade e pertencimento.
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Os questionamentos de Bruna Longo encontram ressonância nas obras de duas outras artistas-criadoras: Erica Montanheiro e Camila dos Anjos, cujos espetáculos, também solos autorais, investigam a condição de mulheres- criadoras em uma sociedade patriarcal. |
Camille Claudel (1864-1943), em quem Erica Montanheiro inspirou-se para criar Inventário, dirigido por Eric Lenate, passou 30 anos encarcerada em uma instituição psiquiátrica. Antes de ser internada, ela viveu durante muitos anos à sombra de dois homens, seu irmão escritor Paul Claudel e seu amante escultor Auguste Rodin, de quem ela foi aprendiz e assistente. Diante de uma relação abusiva com Rodin (que era casado e mantinha Camille como sua amante) e das dificuldades de firmar-se economicamente, de encontrar o reconhecimento simbólico e material, apesar de seu imenso talento como escultora, Claudel se posicionou fortemente contra aquela organização social patriarcal. Foi rotulada como desajustada, abandonada, silenciada - ações de extrema violência que a fizeram - num ato de coragem e revolta - destruir boa parte da própria obra artística. |
Quebra-Cabeça, de Camila dos Anjos, é um espetáculo autobiográfico e documental, um olhar da atriz sobre a própria história pessoal e profissional, que expõe as frustrações, as expectativas e as consequências de ter começado a trabalhar ainda criança. Como se afirmar enquanto mulher, artista e criadora quando se cresce nos estúdios de TV e palcos? Como tomar para si mesma a responsabilidade de autoria da própria criação quando o mundo patriarcal ainda enxerga as mulheres como coadjuvantes dentro da organização social?
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Três mulheres em três espetáculos autorais solo sobre três artistas em três períodos históricos diferentes (inicio dos séculos XIX, XX e XXI) e um universo de desafios em comum.
"Que importa quem fala?" Quanto importa quem fala quando o individuo é uma mulher escrevendo em um gênero literário considerado masculino e obrigada a publicar sua obra de forma anônima? Saber que Frankenstein foi escrito por uma jovem de 18 anos não afeta a apreciação da obra? Não faz mesmo parte da obra? A obra destruída de Camille Claudel, suas peças atribuídas a Auguste Rodin e o fim precoce de sua carreira por conta de sua saúde mental são tão relevantes para sua história como artista quanto as obras que sobreviveram. O esgotamento da mulher Camila ao se perceber só́ atriz e mais nada e o ato de tomar posse da própria narrativa criando um espetáculo autoral vem de encontro a essa busca por uma identidade criadora e propositora.
É impossível também separar as mulheres Bruna Longo, Erica Montanheiro e Camila dos Anjos das artistas-criadoras que escolheram o formato de espetáculo solo autoral como ferramenta de resistência criativa e autonomia sobre suas obras. Em uma série de palestras que viriam a se tornar o livro "Um Teto Todo Seu", Virginia Woolf famosamente escreveu que "uma mulher deve ter dinheiro e um quarto próprio para poder escrever ficção". As condições para a criação de uma obra de arte talvez não tenham mudado muito, mas tendo vencido diversas das conjunturas de dependência legal e financeira a que Woolf remete, sobram ainda a constante luta por espaço em instituições majoritariamente lideradas por homens, a experiência de silenciamento em processos de criação, a supressão de autoria de ideias e projetos. Mary, Camille, Bruna, Erica e Camila (como mulher e personagem) não procuravam ou procuram suas vozes. Procuravam e procuram espaço para que suas vozes fossem e sejam ouvidas, sem cerceamentos. Buscam ter seu valor simbólico reconhecido para que este torne-se também valor econômico. Vale apontar que as três artistas são mulheres brancas e cisgênero, conscientes dos seus lugares na escala de privilégios.
O texto sumério de 2300 a.C., citado no início dessa justificativa, o primeiro a trazer o nome de quem o escreveu, não é apenas um poema mas um poema no qual quem o criou repete diversas vezes a frase "Eu, Enheduana", um atestado de autoria e também de existência: "Eu, Enheduana”. Essa declaração é também considerada por estudiosos como raro registro biográfico para o período. Parece dizer que para o autor, registrar sua voz, ser sujeito, era essencial. E Enheduana não era um autor, mas uma autora. Enheduana era uma mulher.
Anônimo Muitas Vezes Foi Mulher:
Transmissão dos solos autorais femininos Criatura, Uma Autópsia, Inventário e Quebra-Cabeça
Idealização: Bruna Longo
Direção de Produção: Selene Marinho
Produção Executiva: Marcela Horta
Montagem e cenotécnica: Evas Carreteiro
Registro Audiovisual: Bruta Flor Filmes
Direção de Fotografia: Cacá Bernardes
Direção de Imagem e Montagem: Bruna Lessa
Projeto gráfico: Kleber Montanheiro
Intérprete em libras: Mirian Caxilé
Fotos: Danilo Apoena
Assessoria de Imprensa: Pombo Correio
CRIATURA, UMA AUTOPSIA, de Bruna Longo
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INVENTARIO, de Erica Montanheiro
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QUEBRA-CABEÇA, de Camila dos Anjos
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SERVIÇO
TEATRO CACILDA BECKER
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TEATRO ARTHUR AZEVEDO
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TEATRO JOÃO CAETANO
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TEATRO ALFREDO MESQUITA
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EVENTOS
Oficina: Provocações para a criação de espetáculos solos autorais feitos por mulheres
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MESA DE DEBATES: "Anônimo foi muitas vezes uma mulher: Autorias suprimidas" - sobre a supressão autoral histórica de obras criadas por mulheres, com a Prof. Dra. Carla Cristina Garcia, cientista social especialista em sociologia de gênero, estudos feministas e lazer urbano. Sábado, 14 de agosto, às 18:00.
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MESA DE DEBATES: "Espetáculos Solo: resistência artística e território autoral", com a atriz e pesquisadora Janaina Leite. Sábado, 21 de agosto, às 18:00.
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